segunda-feira, 25 de março de 2013

Pela porta da frente

Vanessa nasceu e cresceu na periferia pobre de Taubaté. Sempre estudou em escola pública e até o ensino médio acreditava que toda faculdade era paga
Poder voltar à escola e ter mais chances de conseguir um trabalho longe da rotina extenuante do canavial. Esse era o maior desejo de Agenor Custódio, que entre os 12 e 18 anos cortava cana em Mato Grosso do Sul. O que jamais imaginou esse brasileiro nascido numa comunidade indígena da etnia Terena, em Aquidauana, era que, aos 39 anos, se formaria em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 

Tampouco que viria a ter possibilidades de passar pela seleção do programa de mestrado na mesma instituição, qualificando-se a disputar, em condições de igualdade, uma boa vaga na área de audiovisual ou na carreira acadêmica. Localizada no interior paulista, a 230 quilômetros da capital, a UFSCar é uma das dez melhores do país, segundo indicadores de qualidade do Ministério da Educação.
“Sem as cotas seria impossível entrar numa universidade pública, gratuita, prestigiada, estudar, pesquisar e ainda ter a chance no mestrado”, diz Agenor, da etnia Terena e ex-cortador de cana
Agenor sempre teve dificuldades para estudar. Na adolescência largou a escola para trabalhar. Aos 21 anos se matriculou no ensino médio, que só concluiu aos 28. Mesmo assim foi aprovado no vestibular de Turismo de uma universidade pública de seu estado. Estava no terceiro ano quando teve de parar por falta de dinheiro para alimentação, moradia e transporte. Mas o sonho não morreu. Em 2008 ingressou na UFSCar graças à cota para indígenas; neste mês de março vai colar grau. “De outra forma seria impossível entrar numa universidade pública, gratuita, prestigiada, poder estudar como estudei, pesquisar e ainda ter a chance no mestrado”, avalia.

Sua vizinha de república, Vanessa David de Campos, 23 anos, aluna de Engenharia de Produção, também tem grandes expectativas. Ingressou na UFSCar em 2008, beneficiada pelas cotas para negros. Além de estudar, desenvolve atividades de pesquisa num grupo que dá consultoria em ergonomia para grandes empresas. Vanessa atua ainda na divulgação científica por meio do teatro, o que lhe permitiu conhecer praticamente todo o país, e num coletivo de estudos africanos.

Negra e primeira da família a entrar na universidade, a futura engenheira nasceu e cresceu na periferia pobre de Taubaté (SP). Sempre estudou em escola pública e até o ensino médio acreditava que toda faculdade era paga. Por isso foi estudar modelação industrial no Senai para entrar mais cedo no mercado de trabalho. Fazia curso técnico junto com o colegial, era aprendiz numa indústria de autopeças e tinha aulas nos fins de semana num cursinho popular. Aos 18 anos, com dinheiro emprestado, viajou sozinha pela primeira vez para se matricular em São Carlos. Sem computador portátil e dinheiro que mal dava para xerox, enfrentou dificuldades. “Tive muitas desilusões. Embora não seja declarado, o racismo existe aqui também”, afirma.

Uma nova cultura
Ex-metalúrgico, o colega Edmar Neves da Silva, 21 anos, do terceiro semestre de Ciências Sociais, ingressou na faculdade por meio da cota para oriundos da escola pública. Cursou a primeira metade do ensino fundamental na rede municipal de Mogi-Guaçu (SP), depois seguiu na rede estadual até o ensino médio. “A formação foi muito ruim, em especial no colegial, quando praticamente não tive professor de História”, lembra o estudante, que sempre quis chegar ao ensino superior público, pela gratuidade e pela qualidade. 
Edmar cursa o terceiro semestre de Ciências Sociais na UFSCar. “A formação foi muito ruim, em especial no colegial, quando praticamente não tive professor de História” 
O que o ajudou a suprir as falhas foi uma bolsa de um curso pré-vestibular particular que ganhou em 2010. Durante o dia trabalhava no controle de qualidade de uma fábrica e estudava à noite e também nos fins de semana.

Dirigente do diretório acadêmico da UFSCar, Edmar é o segundo entre os familiares a entrar numa faculdade. A irmã mais velha cursou Administração com bolsa integral do Programa Universidade para Todos (ProUni) e agora faz pós-graduação em Marketing. Os pais não conseguiram terminar o ensino fundamental.

Uma minoria da população brasileira, que pôde pagar por bons colégios particulares para que seus filhos chegassem a cursos prestigiados das melhores universidades públicas, ainda se incomoda ao vê-los passar a dividir as salas de aula com negros, indígenas e estudantes pobres vindos da escola pública. 

São estudantes que, antes de as cotas começarem a ser adotadas, em 2004, dificilmente estariam ali. Mas é possível que esse incômodo seja diluído à medida que parte dessa elite passe a se conscientizar de que as boas escolas públicas são mantidas pelos impostos pagos por todos.

Há também casos como o da fisioterapeuta Silvia Martinez, que sempre pagou boa escola particular para a filha que, neste ano, ficou na lista de espera da Universidade de Brasília (UnB). “Se não houvesse vagas reservadas para as cotas, ela teria entrado na primeira. É uma mudança de mentalidade, talvez leve algumas gerações para ser culturalmente assimilada. Mas, por uma questão de justiça social, valerá a pena”, opina.

É uma visão que faz sentido. Um estudo dos pesquisadores Jacques Velloso e Claudete Batista Cardoso, da UnB – a primeira a adotar cotas para negros e pardos, em 2004 –, simulou as chances de ingresso de candidatos negros em processos seletivos no período entre 2004 e 2008 caso as cotas não existissem. Na maioria dos casos, as cotas mais que dobraram as probabilidades de ingresso desses candidatos.

Para completar, no final de agosto de 2012 a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.711, que disciplina o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. 

O prazo é de quatro anos para que essas instituições passem a reservar metade das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Desse percentual, metade é para estudantes de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita.  

Adversidades 
Por meio da imprensa conservadora, os porta-vozes da classe social que o ex-governador paulista Cláudio Lembo batizou de “elite branca” empreenderam uma verdadeira cruzada. Espalhou-se uma visão enviesada, segundo a qual as cotas ferem o princípio da igualdade e do mérito acadêmico, são ineficazes já que o problema estaria na péssima qualidade do ensino básico público, e não na má distribuição de renda –, rebaixam o nível acadêmico, desfavorecem os brancos mais pobres em detrimento dos negros e prejudicam essa população ao estigmatizá-la como incompetente. Para completar, esses setores da imprensa tentavam fazer crer que a sociedade brasileira é contrária à política.

Todos esses mitos, porém, estão sendo derrubados. Em 2006 e 2008, pesquisas do instituto Datafolha indicavam, sem alarde, que mais de 80% da população aprovava as cotas. Em fevereiro passado, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma pesquisa do Ibope que mostra que 62% dos entrevistados (dois em cada três brasileiros) apoiam cotas em universidades públicas para alunos negros, pobres e estudantes da escola pública. 

A pesquisa foi realizada em todas as regiões brasileiras e constatou que é maior (77%) o apoio às cotas para os de baixa renda e/ou conforme a origem escolar dos pretendentes, seguido por 64% de aprovação às baseadas em critério de raça. A oposição é maior entre os entrevistados brancos, das classes A e B, moradores das capitais, em especial nas regiões Norte e Centro-Oeste. E menor entre os estudaram da 5ª à 8ª série, emergentes da classe C, nordestinos e moradores do interior. Segundo o jornal, os que buscam ascensão social e econômica são mais simpáticos a políticas que aumentem suas chances de chegar à faculdade. A pesquisa mostra que, em todas as camadas sociais, o apoio é maior que a contrariedade.

O recado da pesquisa é claro: está aprovado o mecanismo que permitiu aumentar a presença de populações excluídas nas universidades. “De 2004 a 2011, a proporção de pessoas pertencentes à faixa de menor renda aumentou sua presença no ensino superior, passando de 0,6% para 4,2%. No mesmo período, a inserção dos pretos saltou de 5% para 8,8% e dos pardos, de 5,6% para 11%”, diz o professor e pesquisador João Feres Júnior, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). 

População esclarecida
Na avaliação de frei David Raimundo dos Santos, diretor da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes (Educafro), a aprovação das cotas é fruto do entendimento dos argumentos sólidos dos defensores da medida. “Com humildade, sabedoria e vigor, essas pessoas levaram esclarecimento à opinião pública, o que não aconteceu com os críticos que apareceram em 90% de todas as reportagens contrárias publicadas nesses 10 anos”, diz. “Quando a imprensa aprofundar o debate de maneira responsável, a tendência é a aprovação aumentar ainda mais.”

Entre os que não apoiavam as cotas e mudaram de ideia está o juiz federal William Douglas, do Rio de Janeiro. A princípio contrário à reserva para negros, ele passou a defender o aperfeiçoamento das ações afirmativas.

Branco, filho de pai lavrador e mãe operária, enfrentou dificuldades para chegar aonde chegou, mas não acredita mais na exigência do que chama de heroísmo. 

“Minha filha estuda em colégio caro, onde nada falta, com professores bem pagos e ótima estrutura. O mesmo não acontece com a maioria das crianças pobres, que estudam em escolas sem professores, carteiras ou banheiros. Não é justo nem honesto que todos sejam exigidos da mesma forma na hora de ingressar na universidade”, diz.Entre os que não apoiavam as cotas e mudaram de ideia está o juiz federal William

Como lembra frei David, há cotas apenas para o ingresso. A permanência e a conclusão são por conta do aluno. E, com o mesmo nível de exigência durante o curso, os cotistas têm demonstrado capacidade de superar as deficiências do ensino básico e render igual ou melhor que não cotistas. Em 2008, foi constatado que o desempenho acadêmico dos cotistas negros era de 6,41 e daqueles das escolas públicas 6,56, acima do 6,37 dos não cotistas. Além disso, a taxa de conclusão dos cursos era maior.

Dados semelhantes foram encontrados na Universidade Estadual de Campinas. Embora as estaduais paulistas não adotem sistema de cotas, a Unicamp tem um programa que concede pontos adicionais na nota do vestibular dos egressos da rede pública. A comissão permanente para o vestibular constatou que a nota média desses alunos beneficiados foi mais alta que a dos demais.

Outra resposta ao discurso de que a política de cotas seria demagógica e os beneficiados abandonariam o curso vem de um estudo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A maioria dos cotistas já tinha cumprido a maior parte dos créditos das disciplinas e o desempenho estava entre os mais altos em cursos como Matemática, Física, Engenharia Elétrica, Ciências Biológicas, Odontologia, Farmácia, Filosofia, Comunicação, Nutrição, Psicologia e Direito. Os cotistas também estiveram menos sujeitos a reprovação por faltas.

Primeiro aluno a ingressar na UFBA por meio de cotas, Icaro Vidal formou-se em Medicina em 2011. Negro e oriundo da escola pública, viu graduarem-se inúmeros “grupinhos” de estudantes brancos, formados nas melhores escolas particulares de Salvador. Nunca fez parte de nenhum deles, tampouco sentiu na pele preconceito por ser cotista. Mas sabe que existia, de forma velada. 

Médico do Programa de Saúde da Família da Prefeitura de Salvador e servidor estadual num instituto de criminalística, Icaro agora torce pela educação brasileira. “As cotas facilitam a entrada na faculdade, mas isso não é tudo. É preciso melhorar a escola pública. Atendo adultos e crianças de 12 anos que não sabem ler nem escrever.”

RBA

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