domingo, 2 de junho de 2013

Um dia na vida de um professor

Aula de resistência: um dia na vida de um professor

Dos fones pendurados nas orelhas da molecada, a inconfundível batida do funk ecoa pela sala. Uma garota ensaia um arremesso com bolinha de papel. Não converte o ponto no cesto de lixo. Demora alguns minutos para a professora Claudete Borges, de 36 anos, vencer a tagarelice dos alunos do sexto ano da Escola Municipal Oliveira Viana, no Jardim Angela, zona sul da capital paulista.

"Pessoal, amanhã haverá uma assembleia de professores para definir os rumos da greve. A escola deve fechar. Por favor, voltem apenas na quarta-feira para se informar sobre o retorno às aulas", anuncia, quase aos berros.

A turma ouve o recado com desdém. Um rapaz quer saber o motivo da paralisação. "É a forma de reivindicar melhores condições de trabalho", responde de bate-pronto, mas a justificativa parece não convencer os insatisfeitos com a futura reposição de aulas aos sábados. "É assim mesmo, boa parte dos alunos não entende. Observa o professor chegar de carro e acha que ele tem vida confortável, reclama à toa. Mal sabem quanto suor foi dedicado para pagar as parcelas do automóvel popular", comenta Claudete, professora de Geografia há oito anos. Ela não tem carro. Depende de caronas e transporte coletivo.

Talvez os estudantes seriam mais sensíveis à causa se conhecessem os problemas enfrentados pelo professor, especula. "Os salários são baixos, temos de nos desdobrar em duas ou três escolas para melhorar a renda, uma jornada exaustiva" lamenta. "Sem falar da violência em sala de aula, a agressividade dos estudantes. Tenho sorte de lecionar para alunos do ensino fundamental. Os pequenos são mais fáceis de lidar."

Ainda assim, Claudete sente no corpo os efeitos da rotina estressante. Em abril, passou mal em sala de aula e teve de ser socorrida às pressas por uma colega de trabalho. "Minha pressão estava 18 por 12, o médico ficou assustado." A sina repetiu-se no início de maio. Levada ao Hospital Municipal do  Boi Mirim pelo irmão, foi surpreendida por um novo pico de pressão. "Quem aguenta essa rotina maluca por tanto tempo?" De fato, são quase 12 horas de trabalho por dia em duas escolas, fora o tempo em casa para a preparação de aulas e correção de provas. Por vezes, estica até 11 da noite com uma atividade informal: revisão de trabalhos acadêmicos. A dupla jornada, nas redes municipal e estadual, rende 3 mil reais mensais, quase o dobro da média salarial do País, mas ainda pouco para abandonar a marmita e almoçar todos os dias num restaurante.

O dia começa cedo, às 5h30 da manhã, tempo de despertar, tomar banho, preparar o desjejum para a sobrinha de 4 anos e tomar uma pequena xícara de café. Uma hora depois, precisa estar a postos na frente de casa para garantir a carona com a mãe de uma de suas alunas. "Não sei o que faria sem a ajuda dela. As linhas de ônibus não cobrem bem a região, e eu demoraria ao menos 40 minutos para chegar à escola. De carro, é 10 minutos." Ás 7 da manhã, estava em plena atividade na Escola Estadual Oswald de Andrade, no Jardim Herculano. Seis desgastantes aulas depois, ao meio-dia e meia, dá uma breve escapada da escola para arejar a cabeça. "Tive de conter uma briga agora há pouco. Um giz atingiu a cabeça de uma menina e ela foi bater boca com o garoto. É difícil manter a calma nessas horas, mas eu prefiro resolver os conflitos dentro da sala", diz, antes de entrar numa reunião pedagógica que se estenderia até as 14h10 da tarde. Somente então pegaria a sua segunda carona, desta vez com a irmã Cláudia, para se deslocar até a outra escola.

Igualmente esbaforido está o professor José Gomes, de 23 anos, com o capacete no cotovelo. Estudante do último ano do curso de História em uma universidade particular, ele leciona desde o ano passado em três diferentes escolas. Para chegar a tempo nos compromissos, aventura-se no trânsito com sua Yamaha de 250 cilindradas. "Se fosse de ônibus, seria impossível. Perderia quatro horas indo de um canto para outro", afirma o docente, que recebe 1,2 mil reais por mês. "Era frentista de um posto de gasolina e ganhava o mesmo tanto, mas tinha de trabalhar no fim de semana. Para mim, é vantajoso ser professor."

Mas é preciso ter fôlego. Mais de um quinto dos professores brasileiros leciona em dois ou mais estabelecimentos de ensino para ter um salário melhor. No ensino médio, metade enfrenta uma dupla, por vezes tripla, jornada. O transporte é sempre um problema. Alfrânio Marreira, de 36 anos, gasta ao menos três horas por dia para se locomover entre as escolas onde trabalha. Todos os dias, desperta às 5 da manhã e toma um café apressado para chegar antes das 6 no porto de sua cidade, Benjamin Constant (AM), divisa com o Peru e distante 1,1 mil quilômetros de Manaus. De lá, toma uma embarcação e navega por 40 minutos pelo Rio Solimões até uma comunidade ribeirinha. As aulas na escola de madeira, na qual a energia elétrica só chegou em 2010, vai das 7 da manhã às 11h30.

Depois, regressa na canoa de madeira com um Motor Rabeta de 3 HP. "A maioria dos barcos não tem cobertura, então seguimos viagem sob sol e chuva", comenta. Marreira só tem a tarde para preparar suas aulas. A noite, leciona em uma escola estadual das 7 às 11 da noite. Apesar do corre-corre, considera-se privilegiado. "Tem gente que trabalha em comunidades mais afastadas e precisa passar a semana por lá." Sua maior queixa, além do transporte precário, diz respeito aos salários. "A escola municipal não cumpre a Lei do Piso. Um professor de formação média tem um salário-base de 678 reais para uma jornada de 20 horas. A lei determina 1.567 reais para uma jornada de 40 horas. Portanto, o salário deveria ser de 783 reais", calcula o professor de Matemática. "Para maquiar o descumprimento da lei muitos municípios embutem na conta o pagamento de benefícios, como o auxílio para o deslocamento para comunidades distantes", explica o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Amazonas, Marcus Libório.

Nas últimas duas décadas, houve avanços importantes na condição salarial do magistério no País. A criação de mecanismos de financiamento, como o Fundef, em 1997, e a Lei do Piso, em 2008, garantiram ganhos econômicos significativos, com aumentos reais acima da média dos demais trabalhadores. Ainda assim, a discrepância entre os salários de professores em relação aos profissionais com mesmo nível de formação é gritante. Com base nos dados da Pnad 2009, Thiago Alves e José Marcelino de Rezende Pinto, do Departamento de Educação da USP-Ribeirão Preto, elaboraram um ranking socioeconômico de 32 "profissionais das ciências e artes", conforme a renda média per capita de cada um deles. Pelo critério adotado, os professores de educação básica ocupam a 27ª colocação.

"O novo Plano Nacional de Educação tem como meta equiparar os rendimentos de professores. Seria preciso praticamente dobrar os salários médios da categoria", afirma Rezende Pinto. "Hoje, a evasão dos cursos de licenciatura em universidades públicas gira em torno de 50%. Quem se forma prefere prestar concursos públicos para a Receita Federal ou bancos estatais para ganhar mais. Hoje, o professor é formado em escolas públicas e faculdades privadas de baixa qualidade."

Na avaliação de Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da USP, a educação no Brasil só dará um salto de qualidade quando melhorar a atratividade da carreira docente. "Houve ganhos salariais nos últimos anos, mas isso costuma ocorrer em momentos específicos, decisão de um governo que não é mantida pelo outro. No fim, o salário é corroído pela inflação ao longo do tempo", afirma. "Os gestores insistem em criar políticas de bonificação para professores com base no desempenho dos seus alunos. Acaba por punir os professores que lecionam nas periferias, em áreas de vulnerabilidade social." Desde que a Lei do Piso foi aprovada, em 2008, a regulamentação é alvo de contestações judiciais encampadas por governadores. O STF declarou a lei constitucional, assegurando uma remuneração mínima aos professores de nível médio com jornada de 40 horas semanais. Entendeu, porém, que a lei passou a ter validade a partir de abril de 2011. "Se os reajustes fossem feitos a partir de 2009, hoje o piso seria de 2.347reais, e não os atuais 1.567. Mesmo assim, apenas cinco estados cumprem integralmente a lei. Os demais ou não pagam o salário correto ou se recusam a reservar um terço da jornada de trabalho a atividades extracurriculares", afirma Heleno Araújo Filho, secretário de assuntos educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). É o caso de São Paulo, onde metade dos professores não é efetiva.

Incluída na chamada "categoria O", Claudete reclama do tratamento diferenciado dispensado aos professores da rede paulista. "Não posso usar o Hospital do Servidor Público, só posso abonar duas faltas a cada dois anos, enquanto os efetivos têm direito a seis por ano, e meu contrato é temporário. A cada dois anos, tenho de passar por uma quarentena, antes de pleitear novas vagas nas escolas. A instabilidade é enorme", reclama, pouco depois do apressado almoço. Comeu em tempo recorde. Foram 3 minutos para esquentar a marmita (arroz, feijão, carne de porco e repolho refogado), 10 minutos para ingerir a refeição e mais 2 para lavar a louça na pia da escola. "Tenho de correr para não chegar atrasada à aula das 3 da tarde."

O combate aos contratos de trabalho precários foi uma das principais bandeiras da recente greve dos professores paulistas, suspensa na sexta-feira 10. O movimento tomou a decisão após a Secretaria de Educação assumir uma série de compromissos: reajuste salarial de 8,1%, implantação paulatina da jornada do piso, com um terço do horário de trabalho reservado para atividades extraclasse e a redução da quarentena para os professores da "categoria O", de 200 para 40 dias. O sindicato mantém, porém, estado de alerta e mobilização.

As mudanças animam, mas não garantem o sono tranquilo de Claudete. "As contas não esperam a minha quarentena." Não por acaso, a professora se diz mais valorizada na escola mantida pela prefeitura. "O salário é maior e os alunos, mais comportados. Dá para fazer um trabalho bacana."

Mas nem sempre foi assim. Nos anos 1990, quando o Jardim Angela foi eleito pela ONU o bairro mais violento do mundo, a diretora da escola, Jucileide Mauger, tinha de negociar a vida de estudantes com traficantes. "Alunos jurados de morte entregavam a arma para mim no início da aula e eu devolvia na saída. Não podiam ficar desarmados." A volta por cima, diz a gestora, só foi possível quando os educadores e líderes de ONGs atuantes na região se uniram para colocar os jovens em ambientes seguros, como a escola, que passou a promover festivais de música. Jucileide também tomou a iniciativa de fazer um censo escolar no bairro e convidar quem havia abandonado a escola a retornar aos estudos. "Tínhamos 5 classes noturnas e passamos a ter 15." Hoje, a escola fica aberta à comunidade, que pode usar a quadra e até promover casamentos no prédio. "Eu mesmo casei lá, em 2001."

Nem todos conseguem, porém, lidar com a violência no ambiente escolar sem apoio. "Vários alunos são jovens que se envolveram com drogas ou pequenos furtos. E a Justiça os manda para cá com ordem judicial", comenta Ivânia de Lima , diretora de uma escola na cidade gaúcha de Lagoa Vermelha, a 320 quilômetros de Porto Alegre. "Esses jovens são agressivos. Alguns chegam drogados, destroem a escola, nos ameaçam. E não temos psicólogos ou assistentes sociais para lidar com esse tipo de situação. Aqui, temos professores com salário-base inferior a mil reais. Além da remuneração aviltante, ainda trabalham sob ameaça."

Um levantamento feito com professores da rede paulista de ensino mostrou que 44% deles sofreram algum tipo de violência nas escolas. Contratada pelo sindicato da categoria, a Apeoesp, a pesquisa percorreu 167 cidades de janeiro a março. Entre as vítimas, 39% sofreram agressão verbal, 10%, assédio moral, 6%, bullying, e 5%, agressão física. Em março, uma professora quase ficou cega após ser agredida em uma escola de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Os alunos apagaram a luz da escola e, no meio da confusão, arremessaram uma lixeira contra o rosto dela.

Muitos docentes não suportam a pressão e desenvolvem graves problemas de saúde. De acordo com um survey realizado em 2009 em sete estados do BrasiI (MG, ES, GO, PR, SC, RN e PA), com 8.875 professores da educação básica, 26% dos entrevistados tiveram de se afastar do trabalho no ano anterior para tratar depressão, ansiedade, síndrome do pânico ou estresse. " Esses fatores só não foram mais recorrentes que os processos inflamatórios nas vias respiratórias, como gripe e amigdalite", comenta Dalila Andrade Oliveira, do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da UFMG.

"Vivo sob efeito de antidepressivos desde outubro de 2012. Além de psicoterapia, o médico receitou doses de Clonazepam e Fluoxetina", comenta uma professora do Recife, que não quer ser identificada. Aos 48 anos, 31 dedicados ao magistério, ela coleciona uma longa lista de dissabores em sala de aula. Xingamentos, cadeiras arremessadas, ameaças de morte. Após se envolver em bate-boca com um estudante, pediu transferência da escola onde atuava. E viu, tempos mais tarde, o mesmo aluno-problema ser transferido para onde estava. "A direção da escola foi totalmente omissa."

Daí a desilusão de muitos profissionais no fim da carreira. Waldir Odilon de Faria, 58 anos, passou por 12 escolas paulistanas ao longo de sua carreira de 30 anos de magistério. É assistente de direção da Escola Municipal Oliveira Viana e está em processo de aposentadoria na rede estadual, onde leciona História para os alunos do ensino médio. "Quando comecei a dar aulas, em 1983, o professor era valorizado. Nunca recebeu bons salários, mas tinha o respeito dos alunos, da sociedade. Hoje não é bem assim", lamenta. "Sou apaixonado por sala de aula. Mas se fosse iniciar a carreira hoje... Bem, eu pensaria duas vezes." Claudete ouve parte do desabafo do colega, mas não demonstra abalo. São 6h30 da tarde, pode voltar para casa. Antes precisa vencer a epopeia do trajeto de volta. Dois ônibus e uma pequena caminhada. Só chegaria em casa às 8 da noite. Após o jantar, ainda faria um trabalho de revisão de texto para complementar a renda. Previsão de ir para a cama? "Não antes das 11." Com sorte, teria seis horas de sono, antes de recomeçara batalha do dia seguinte. E, com um sorriso inabalável, difícil de compreender, renova as suas esperanças num futuro melhor: "Tenho fé de que as coisas vão mudar. E acredito muito nesses jovens. Eles estão meio perdidos, mas a gente v i encontrar o caminho certo. Não vou desistir da educação".

CNTE



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